Malu Fontes, jornalista e professora |
Malu Fontes
Coitados daqueles que têm consciência de que gostam de informação e julgam-se bem informados porque veem mais de um telejornal, em mais de uma emissora, assinam ou compram jornais com frequência e têm assinatura de uma revista semanal. A convulsão no Egito, com toques de rebelião, revolta, levante e outra dúzia de substantivos que nominam qualquer coisa parecida com turbulência social e política, dá bem a dimensão do quanto quem quer saber das coisas tem é que aprender a ler nas entrelinhas de tudo o que há por aí em letras e imagens supostamente informativas e noticiosas.
Para o telespectador dos telejornais brasileiros, por exemplo, mesmo os mais assíduos, o Egito era, até a semana passada, tão somente um destino turístico exótico na fronteira entre a África e o Oriente, o país das pirâmides, das tumbas e dos faraós. Até as imagens de convulsão irromperem e permanecerem na tela da TV, pode-se dizer que a maioria dos telespectadores brasileiros tinha certeza de que a vida política egípcia era assexuada, inexistente. No entanto, sentado e centrado no poder estava um ditador há 30 anos, abençoado e tratado a pão-de-ló durante todo esse período pelos sucessivos governos dos EUA, que dão ao Egito mais de um bilhão e meio de dólares por ano só para armar seu exército.
PITBULL - Por que os Estados Unidos armam o exército egípcio e fazem de conta, diante do mundo, há 30 anos, que ali não havia uma ditadura? Sim, pois quando se trata de invadir o Iraque e demonizar o Irã, os EUA lançam como primeiro argumento a defesa da restauração da democracia nesses países e a caçada aos ditadores que tanto mal fazem ao povo. E como polícia do mundo, o governo dos EUA sempre ensina ao mundo inteiro, sobretudo via telejornais, que não tolera ditadores. Essa intolerância está longe de ser verdadeira. Se o ditador é amiguinho, pode dormir tranquilo no berço esplêndido do poder que a polícia do mundo esquece esse blábláblá de defesa da democracia e dos direitos políticos de um povo oprimido. Assim foi com a ditadura na Tunísia, que se esfacelou há uma semana, praticamente em horas, e assim foi com o Egito durante três décadas.
A ditadura egípcia era a menina dos olhos dos Estados Unidos e recebia seu bilhão e meio de dólares primeiro porque se tem algo que mete medo, e muito, aos Estados Unidos, é a ira fermentada historicamente contra eles por grupos terroristas, fundamentalistas e radicais islâmicos do Oriente Médio. Ou seja, a ditadura egípcia e seu exército armado até os dentes é uma espécie de barricada, uma delas, atrás da qual os EUA se protegem com medo do Oriente Médio. A outra razão do afeto americano pelo Egito nesses 30 anos é o fato de Israel ser o filho primogênito e amado/armado dos Estados Unidos. No contexto geopolítico, o Egito é, para Israel, enquanto este não acha uma forma definitiva de varrer do mapa daqueles costados a Palestina e os palestinos, uma espécie de pitbull dos Estados Unidos, disposto a avançar sobre os palestinos ao menor pedido de socorro dos israelenses no meio da madrugada.
DIAGNOSTICADO - O fato é que, para o telespectador mediano, só há dois tipos de ditadores no mundo: os malucos das repúblicas de bananas da América Latina ou os radicais islâmicos do Oriente Médio. Para os ditadores da África pouca atenção é dada no noticiário, pois o continente só é destaque na mídia quando ocorre uma tragédia de grandes proporções por doença ou catástrofe natural. Quanto à América Latina, o discurso do mainstream televisivo ocidental ensina todos os dias a suas platéias amestradas que Hugo Chaves é o sucessor encarnado do diabo.
Dois pesos e duas medidas. Chavez é um ditador diagnosticado e etiquetado, mas Diogo Mainardi repreende Lucas Mendes no Manhattan Connection porque este diz que Sílvio Berlusconi é quase um ditador entronado há uma década no poder, quase um ‘dulce’, numa referência ao passado fascista da Itália. A defesa inconteste de Mainardi, hoje morador de Veneza: ‘essa fala é inverídica e um desrespeito aos italianos, pois ele foi eleito nas urnas, pela população da Itália’. Ora, então, por essa linha de raciocínio, por que a imprensa brasileira e sobretudo as emissoras de TV, em uníssono, ficam tão à vontade para "desrespeitar" os cidadãos venezuelanos se foram eles, também nas urnas, que elegeram Chávez por vezes sucessivas? Por que se pode desrespeitá-los tanto e nem um pouco aos italianos?
Sobre como o mundo aprende que há ditadores e ditadores, há um fator extremamente poderoso no agendamento do conteúdo do noticiário internacional. A jornalista Maria Cleidejane Espiridião desenvolveu uma análise brilhante em sua tese de doutoramento pela Universidade Metodista de São Paulo, ainda em andamento. O estudo mostra como praticamente duas grandes agências internacionais, através de seus departamentos de imagem, determinam para o Brasil e para grande parte do mundo o que será veiculado nas editorias de internacional.
Embora existam dezenas de agências internacionais e três ou quatro outras sejam importantes para a produção do conteúdo sobre o que acontece todos os dias no mundo, são a APTN e a Reuters TV que geram a maior parte do que as emissoras de TV brasileiras repetirão verticalmente tal e qual. Assim, não é difícil entender porque os estereótipos dos bons e dos maus do mundo sejam previamente definidos e anunciados ao mundo por meia dúzia de pessoas. São esses grandes oligopólios da informação, junto com os interesses econômicos dos donos do mundo, que silenciam diante de uma ditadura egípcia de 30 anos e apresentam um incômodo Chávez como ‘o’ perigo para a democracia na terra. Mas é muito bom saber que as redes sociais estão fazendo uma diferença jamais vista nesse agendamento do que o mundo deve ou não ficar sabendo e que emissoras de TV como a All Jazeera, são uma pedrada nas vidraças das agências que narram o mundo ao sabor da economia política da Europa e dos Estados Unidos.
Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado em 06 de fevereiro de 2011 no jornal A Tarde, Salvador/BA. maluzes@gmail.com
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